ARTIGOS


O VALOR DE TROCA DA IMAGEM

por Sérgio de Carvalho


(Notas para um debate sobre o chamado teatro pós-dramático. Mulheim, Alemanha, maio de 2009.)
Algumas das mais importantes experiências do teatro latino-americano nos anos 60 e 70 ocorreram no ambiente de grupos teatrais. Esses conjuntos do passado associaram criação coletiva e politização da pesquisa formal. Romperam com a especialização do trabalho artístico e atuaram nas fronteiras do mercado de artes.  Nas décadas seguintes, houve um relativo abandono desse projeto coletivista e politizado devido a vários fatores: perseguição da ditadura militar, globalização econômica, retração do campo socialista etc.  Sua retomada, em escala maior, por uma série de razões, só ocorreu na década de 90, quando na cidade de São Paulo dezenas de coletivos independentes voltam a ter presença crítica no panorama cultural da cidade.
Minha hipótese é que muito da radicalidade desses grupos atuais se liga ao fato de terem superado uma dicotomia entre imagem representacional e cena performática, que marcou a produção teatral nos anos 80.
No teatro brasileiro, aquela foi a década em que se disseminou aquilo que Hans-Thies Lehmann chamou de paradigma pós-dramático. Na sua versão periférica, isso coincidia com uma forma de encenação de caráter pictórico, em que a dimensão narrativa ou representacional estava em segundo plano e a fábula dramática se fragmentava a ponto de desaparecer. Todas as energias cênicas se dirigiam para a criação de uma espécie de paisagem performática.
Do ponto de vista crítico, essa encenação adotava um discurso de ares modernistas, baseado na crítica à imagem. Era comum ouvir a velha condenação de Mallarmé da imagem como duplicação do real. Seria preciso, então, contrapor as performances da forma pura a toda imitação confortável de pessoas ou coisas. A mimese dramática estava abolida e com ela todo logocentrismo.
Essa tendência, influenciada evidentemente pelo modelo de Bob Wilson e de outros grandes encenadores, gerou ótimos trabalhos mas ao mesmo tempo uma espécie de fórmula fácil que chega ao Brasil com o aval da alta cultura internacional. Mas eram poucos os casos em que a tendência anti-mimética produzia uma radicalização negativa capaz de expor o próprio vazio da estética.
Um olhar mais atento poderia observar que já não se tratava do projeto modernista de romper com a lógica da produção de imagens destinada ao consumo das semelhanças. A rigor não havia o desejo de superar a dimensão estética e devolver a arte à vida presencial ou de aprofundá-la até o limite de sua especificidade, como negação do mundo da mercadoria.
O que se via, com mais freqüência, era a troca do consumo das semelhanças representacionais pelo consumo da presença sensorial da performance. Criou-se um mercado alternativo de exibição de formas tecnicizadas, demontrações do aparato de luzes e cenografia, de reconhecimento de técnicas expressivas de atuação, com vista a estimular as sensações cansadas de um público culto.
Mais afinados como o espírito pós-modernista, o que se criou, na verdade, foi um lugar teatral de veiculação de experiências perceptivas, supostamente radicais e anti-midiáticas, mas validadas pelo crescimento dos festivais internacionais que preferiam importar as encenações do terceiro mundo baseadas em experimentações corporais, que não utilizassem palavras ou narrativa, e que assumissem uma dimensão culturalista e antropológica.
Mesmo a teoria que justificava essa teatralidade pós-dramática brasileira de exportação pouco incorporava as reflexões sobre a sociedade do espetáculo em sua crítica à estetização do capitalismo. Era uma teoria que parecia não perceber que as imagens se tornaram a coisa ela mesma. E como diz Jacques Rancière, onde a imagem não se opõe mais à coisa, a forma (performática) não se opõe mais à imagem.
A simples intensificação da experiência perceptiva do público mostrava-se, portanto, insuficiente. A celebração dos ícones puros da presença humana, feita em abstrato, pode ser fetichista, do mesmo modo que as velhas representações dramáticas de estruturas do poder costumam ser auto-referentes.
Numa sociedade em que o capitalismo se culturaliza, em que a estética está em toda a parte, por que apostar no retorno pós-modernista à estética quando na verdade não se pratica mais, como observa Fredric Jameson, a procura de autonomia radical da forma, mas sim a provocação de pequenas intensidades subjetivas locais. E por que não enfatizar que esse neo-esteticismo anda de mãos dadas com o fim da política na era pós-moderna?
O que vem ocorrendo no movimento de teatro de grupo de São Paulo, nos últimos anos, é uma retomada do antigo projeto modernista de confronto com a forma da mercadoria. E isso não pode acontecer apenas através da invenção de estratégicas formais. Não se trata mais de mimese ou presença, imagem ou performance, mas sim de uma pesquisa negativa sobre relações de trabalho e novos modos de criar espaços de inserção e modificação do sistema das artes. A luta contra a divisão do trabalho, sua especialização intelectual ou braçal dentro da sala de ensaio se completa na procura de relações diferentes com espectadores e públicos para além do aparelho cultural mantido pelo estado e empresas. A procura de conexões entre a reflexão formal e a história do capitalismo tardio entra de novo em cena.
É no combate trans-estético que a imagem reencontra a chance de alienar seu valor de troca em função de uma nova utilidade. Nesse sentido, vale a pena voltar a pensar na possibilidade de representação e narrativa desde que a vivência crítica da dimensão presencial do teatro seja capaz de romper o presente absoluto no tempo.
Relato um exemplo para encerrar. Dois anos atrás a Companhia do Latão, grupo teatral de São Paulo, apresentou uma versão livre do texto de Brecht O Círculo de Giz Caucasiano. O prólogo original, como vocês sabem, mostra um encontro entre dois grupos de camponeses de kolkoses soviéticos depois da segunda guerra. Nós decidimos subsitituir o texto de Brecht por um debate contemporâneo sobre o direito à propriedade da terra no Brasil, um país de economia ainda agroexportadora e que tem os maiores latifúndios do mundo. Convidamos um grupo de jovens camponeses ligados ao MST para participar de um exercício teatral. O MST é o movimento de trabalhadores sem terra mais ativo da história brasileira. Promove ocupações de terras improdutivas, educação e politização de milhares de pessoas que viviam antes abaixo da linha de pobreza nas periferias das grandes cidades e, ao mesmo tempo, sofre massacres reais e simbólicos, ao ter que enfrentar pistoleiros e jornalistas.
O nosso prólogo foi feito com um grupo de atores ligados ao MST, com quem costumamos trabalhar. Era um debate de igual para igual, que combinava, de forma não linear, três materiais: o caso ficcional contado por Brecht, o debate sobre suas diferenças em relação aos dias de hoje, e história da luta e conquista daquele assentamento onde estávamos.
No vídeo, que era assistido por público e atores, vemos imagens simples de um processo de ensaio teatral. Mas são cenas radicalmente diferentes da imagem social que o MST tem na mídia e na imaginação da classe média do país. Seu conteúdo e forma são outros. Não se vêem ali as foices e facões de gente pronta para a violência gratuita, não se vê a miséria sem processo, e sim um debate crítico de impressionante lucidez sobre um texto de Brecht e sobre a própria condição histórica. Vê-se ainda uma relação igualitária de trabalho entre gente diferente. O tema da propriedade coletiva dos meios de produção contaminava a forma do prólogo e de todo o espetáculo.
A montagem teve grande repercussão. Seu público, mesmo nas grandes capitais do Brasil, misturava espectadores de alta cultura com camponeses organizados. A luta de classes estava simbolicamente na platéia. A reação da crítica foi mais ou menos a seguinte: a montagem pode ter qualidades do ponto de vista estético, mas no prólogo o grupo é manipulado pelo MST. Ou, como disse aos gritos, uma vez, certa espectadora: “No tempo de Brecht não existia MST”. Nesse inconformismo diante da força do assunto se vê que o problema não era só a imagem dos Trabalhadores sem Terra, mas a de Brecht, que deveria ser tratado como um clássico essencialmente ineficaz, e a do próprio teatro, que não deveria ser lugar de historicização radical.
A negação da estética que vem sendo feita pelo teatro de grupo de São Paulo, movimento que extrai sua força de sua precariedade, não implica uma recusa da beleza. Em São Paulo, cidade que é um laboratório avançado do capitalismo mundial, continua válida uma orientação antiga para a arte: belo é resolver dificuldades.
(Participaram do debate Rafael Spregelbud e Hans-Thies Lehmann. Mediação de Uta Atzpodien. Seminário Blick-Wechsel: Bild-Wechsel, Internationale Begegnung zum kulturellen Bildtransfer zwischen Theater, Kunst und Theorie, festival Stucke 2009, 30 de maio de 2009, Theater an der Ruhr, Mulheim, Alemanha.)

fonte: http://www.sergiodecarvalho.com.br/?p=906