sábado, 28 de maio de 2011

A peça "Um Homem é Um Homem" da ELT por Maria Fernanda Oliveira


Eu, Galy Gay e Dipp

Haiti. Vietnã. Morro do Alemão. Líbia. Está acontecendo, exatamente agora, em alguma fronteira de algum país ou em qualquer lugar onde as leis do estado não penetram ou não retumbam. As veias da mão de algum homem estão fecundas de pólvora e destes canos ejaculam a segurança de um mundo livre. “Livre” de qualquer tentativa de burlar a opinião dominante. De qualquer tentativa de pensar por si, ou questionar a autoridade dominante. Livre, mas não dos poderosos corruptos que financiam a “segurança” e combatem o “terror”. Terror que é implantado hipnoticamente através dos noticiários no imaginário dos senhores de bem, em Roma chamados de bônus pater família -bons pais de família.

O que vemos em “Um homem é um homem”, encenada pela 12.º formação da Escola Livre de Teatro, de Santo André, é o processo que separa o gladiador - ou seja, um soldado a serviço do poder de carregar uma arma nas mãos - dos simples homens civis. A roupa, a farda, um ímpeto de coragem, instinto assassino, amor à pátria, vaidade? A união entre temperamento e caráter e a encenação às nossas vistas da transformação de “um homem que não sabe dizer não” em Geraya Dipp, soldado raso e degenerado. Em dois dias, nasceriam membranas entre seus dedos, dizia o soldado parceiro de companhia. Gali Gay, que saiu de casa para comprar um bom peixe, num primeiro momento até se mostra fiel às suas convicções, numa mistura de servidão e interesse. Aos poucos, vai negando ser quem é, e antes da lua aparecer no céu ele deseja se passar por Dipp para sua conveniência. É como se diz, “uma vez é nenhuma vez”, e assim, de vez em vez, Gali Gay, homem bom, se corrompe, e em três dias faz uma oração fúnebre diante do próprio túmulo. Não sabe mais quem é. Decide ser quem se tornou: um sanguinário soldado de um exército imperialista.

Mais uma vez, se faz necessária a arte para nos darmos conta das contradições e da alienação no nosso cotidiano, nossa desumanização. Neste sentido, a formação da Escola Livre de Teatro cumpriu seu papel. Nada mais atual em tempos sombrios como os de hoje, de freqüente ataque às manifestações sociais e seus lutadores, por parte de quem usa uma arma, letal ou não. Vemos que cada geração tem seus soldados produzidos em série, sejam eles atuantes nas tropas ou mentores intelectuais em seus gabinetes, nas funções de estrategistas políticos. Mudam de cargo e de serviço conforme se galgam graus de honraria e bravura. Alguns ficam nos batalhões de choque, outros de plantão, trabalhando em empresas terceirizadas. Com a ‘segurança’ sob sua tutela, o julgamento é imediato e de autoridade: “aquilo é suspeito”, “aquele é culpado”. Gostam de caminhar com a mão suavemente segura sobre ele, o seu ferro. E os “civis” à eles devem obediência. O trabalho destes agentes de segurança é manter a ordem (deles). Servir e Proteger -uma ideologia, um patrimônio, um interesse. Surge então a contradição sobre quem deve servir a quem.

A questão está posta na ausência da possibilidade de se pensar por si neste sistema que nos ensina a obedecer fielmente e a seguir às correntes da ordem. Que produz trabalhadores em massa, onde um é nenhum. Uma vez é nenhuma vez. Tudo - inclusive a arte - induz a não refletirmos sobre nada, quanto menos se questionar, melhor. Assim, imperam os valores do individualismo, do cada um por si, da crença numa vida melhor quem sabe após a morte, caso o agraciado se mostrar um bom trabalhador no mundo terreno. Onde pensar diferente é trafegar na contramão da história e sofrer o engodo de uma bomba de efeito moral, a todo o tempo. Quem nunca foi tentado a se tornar um Geraya Dipp quando as adversidades se colocam?

Seria necessário que, a cada Geraya Dipp que nos induzem a ser, um defeito de fabricação, inerente à produção viesse à tona com mais força: a inquietação. Como seria se, a cada transformação imposta, nos tornássemos mais humanos, ao invés do contrário? Se formássemos um exército de resistência nas ruas contra qualquer ordem truculenta? Ninguém discorda de que vivemos em tempos sombrios. Porém, cada vez mais o poder quer nos fazer acreditar que a força é unilateral e pertence apenas à uma elite. Se não rompermos com o processo de alienação e de apatia frente à precarização da vida e da privatização da felicidade humana, esta guerra já está perdida, como nos querem fazer acreditar. As armas do poder são a subestimação da arte, a desvalorização da instigação e das habilidades da vocação em detrimento ao ensino da técnica imbecil para uma mão de obra facilmente absorvida pelo mercado de trabalho. Da terceirização das relações mais importantes e principalmente da banalização da violência e da força usada por quem tem calibre para calar quem pensa diferente, geralmente para camuflar interesses econômicos, impedindo a expressão dos soldados do outro lado que ousam ir às ruas.

Para os soldados de cá: Escola Livre de Teatro de Santo André, Praça Rui Barbosa, n.º 12 no Bairro Santa Terezinha, próximo à Estação Prefeito Saladino de Santo André, aos sábados e domingos, às 20:30 e 19:30 respectivamente. Depois de Tahir, da Avenida Paulista, das praças da Espanha... Próximos recrutamentos serão agendados em um local próximo...


Maria Fernanda é bacharel em Direito pela USP e pesquisadora da Ditadura Militar pelo curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André. É mãe da Ingrid e inquieta incurável.

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